Apesar de ter começado a participar de movimentos sociais muito jovem (tinha meus quatorze anos de idade) e ter visto muita coisa neste meio século de vida, tem momentos que ainda os acontecimentos me espantam.
Hoje à tarde recebi a notícia de que o Ministério da Educação decidiu adiar a data da II Conferência Nacional de Educação – CONAE. A mesma seria realizada de 17 a 21 de fevereiro e acontecerá agora somente após o segundo turno das eleições presidenciais.
Em nota no mínimo melancólica o Fórum Nacional de Educação, coletivo de entidades governamentais e não-governamentais socializa que as entidades organizadoras foram “comunicadas” pelo MEC do adiamento e que a desculpa teria sido questões administrativas.
Na página oficial do evento está escrito que a Conferência Nacional de Educação (CONAE) será “um espaço democrático aberto pelo Poder Público e articulado com a sociedade para que todos possam participar do desenvolvimento da Educação Nacional”. E mais, que a mesma teria como tema central “O PNE na Articulação do Sistema Nacional de Educação: Participação Popular, Cooperação Federativa e Regime de Colaboração”.
E, por fim, também informa o referido site que a CONAE 2014 foi convocada pela Portaria n.º 1.410, de 03 de dezembro de 2012 e que “possui caráter deliberativo e apresentará um conjunto de propostas que subsidiará a implementação do Plano Nacional de Educação (PNE), indicando responsabilidades, corresponsabilidades, atribuições concorrentes, complementares e colaborativas entre os entes federados e os sistemas de ensino”.
Milhares de professores, estudantes, gestores públicos e privados e cidadãos se mobilizaram em milhares de eventos preliminares e centenas de delegados estavam arrumando as suas malas para participar da parte final do processo de discussão. Eu participei de Conferências Livres e fui delegado a Conferência Distrital do Distrito Federal e estou escalado para proferir um dos colóquios do evento.
Todas as pessoas da área da educação estão perplexas com o adiamento. Por isso arrisco desvendar os verdadeiros motivos (nem sempre publicáveis nos releases da imprensa oficial):
1. O principal tema da I CONAE, realizada em 2010, foi justamente o Plano Nacional de Educação. A expectativas criada pelo governo (lembro das palavras proferidas pelo ex-presidente Lula na plenária final do evento) era de que as deliberações do evento seriam incorporadas no texto do Projeto de Lei a ser enviado pelo governo. Ledo engano. O PL nº 8035/2010 não incorporou os principais pontos aprovados no evento, especialmente os que mudavam o padrão de financiamento da educação nacional. Isso levou a uma grande frustração nos participantes.
2. Durante o processo de preparação da Conferência um dos temas mais debatido foi a tumultuada tramitação do Projeto de Lei do Plano Nacional de Educação no Congresso Nacional. Não somente a frustração inicial, mas a postura ativa do governo federal para impedir que a mobilização da sociedade civil conseguisse melhorar o projeto governamental. Os principais conflitos no legislativo envolveram quase sempre a articulação conservadora do Ministério da Educação.
3. A aprovação de um Substitutivo no Senado Federal a imagem e semelhança dos interesses do MEC anunciam um acirramento do conflito entre os desejos da sociedade civil, expressos nos posicionamentos das diversas entidades e os interesses do governo e de sua bancada de sustentação.
4. Recentemente o PNE completou três anos de tramitação e não conseguiu ser aprovado a tempo de ser um “fato consumado” quando da realização da II CONAE. Assim, voltando aos seus trabalhos legislativos na primeira semana de fevereiro, a data da Conferência passou a ser coincidente com a votação final do PNE na Câmara. As manifestações das Conferências Municipais e Estaduais foram claramente favoráveis a um conjunto de propostas demonizadas pelo MEC, ou seja, o evento seria um momento de fortalecimento da luta por um Plano que tornasse a participação da União no financiamento da educação nacional mais efetiva, coisa que não interessa ao governo, absorvido com outras prioridades representativas de outros segmentos sociais (leia-se banqueiros credores de nossa dívida pública).
Não precisa ser muito inteligente para desvendar pelo menos um dos reais motivos do adiamento: o governo não quer transformar a etapa final da CONAE em palco para aumento da pressão social sobre a Câmara dos Deputados, pois tal pressão, mesmo que perfeitamente cabível numa sociedade democrática, afeta os planos e os interesses do governo.
As “questões administrativas”, caso realmente pudessem ser levadas à sério, pois o evento está previsto oficialmente, com calendário definido desde dezembro de 2012, levariam a apenas um adiamento que viabilizasse as devidas correções, nunca para o adiamento anunciado.
Por isso, é forçoso adendar um outro motivo ainda não desvendado. Estamos em ano eleitoral e a candidata-presidenta Dilma Roussef tem um sonho de consumo de difícil realização. Ela sonha com um ano tipicamente festivo, o qual seria mais ou menos assim: março teríamos o Carnaval, abril a Semana Santa, Junho todo mundo absorvido pelas emoções da Copa do Mundo, Julho todo mundo gozando as suas merecidas férias e em seguida uma tranquila e pasteurizada eleição.
Acontece que as manifestações de junho de 2013 mostraram que há, mesmo que às vezes de maneira latente, uma insatisfação com a forma de fazer política e com a falta de investimentos públicos nas políticas sociais. Quem pode se esquecer dos cartazes de nossos jovens pedindo Educação Padrão Fifa? Pois é, qual o interesse do governo em promover um evento com a participação de centenas de delegados radicalizados em favor de um Plano Nacional de Educação que aumente despesas federais, todas elas comprometidas com outros interesses?
O adiamento é um golpe na democracia e afeta violentamente a credibilidade dos espaços de participação social existentes no governo. Depois de frustrados pelo não atendimento de suas deliberações em 2010, os educadores e estudantes agora são golpeados no seu direito líquido e certo de expressar a indignação diante do retrocesso que representou o Substitutivo do PNE aprovado no Senado Federal. E, de quebra, impedem que estes delegados e delegadas expressem a insatisfação nacional com os excessivos e descontrolados gastos com a Copa do Mundo.
O adiamento da CONAE mostra o quanto era irreal o slogan do próprio evento. Como falar de ‘participação popular” sem deixar que o povo possa se expressar livremente? Como falar de “regime de colaboração” se toda ação federal é para impedir qualquer revisão do seu papel no cumprimento das metas do PNE e do respectivo financiamento educacional?
Este é um daqueles momentos que os cidadãos esperam das entidades da sociedade civil muito mais do que notas melancólicas. A passividade diante deste golpe na democracia significará algo parecido com a conivência e a cumplicidade. E reforçará o sentimento de nossos jovens de que cada vez mais nossas entidades se identificam com os interesses dos partidos tradicionais que suas lideranças pertencem.
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