terça-feira, 15 de maio de 2012

OLHAR PARA A INFÂNCIA

Guto Andrade
Para Catarina, professores da educação infantil devem ser incluídos na carreira do magistério, com os mesmos direitos

Professora da UFPR defende que a avaliação da educação infantil considere a realidade brasileira, o contexto da criança e seja utilizada como instrumento para melhora do trabalho realizado, não para medir o desempenho do aluno


Marina AlmeidaProfessora de educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Catarina de Souza Moro é especialista em políticas públicas, avaliação da educação infantil e práticas educativas da primeira infância. A pesquisadora, que também tem formação em psicologia, defende que o país desenvolva um instrumento próprio para avaliar a oferta da educação infantil nos municípios, dando continuidade aos Indicadores de Qualidade da Educação Infantil (acesse o documento em http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/indic_qualit_educ_infantil.pdf).

Na entrevista a seguir, concedida à editora Marina Almeida, ela aponta consequências não previstas da implantação do ensino fundamental de nove anos, como a antecipação da aprendizagem dos alunos de 4 e 5 anos. Catarina ainda fala sobre a importância de o professor da educação infantil ser considerado como profissional do magistério, as deficiências dos cursos de pedagogia ao abordarem essa etapa de ensino e a transferência de instituições conveniadas para a gestão direta da Secretaria de Educação.

A avaliação da educação infantil está em pauta no país desde que em outubro a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República anunciou a intenção de realizar uma avaliação nacional do progresso do desenvolvimento das crianças de 0 a 3 anos, utilizando um instrumento criado nos Estados Unidos, o Ages & Stages Questionnaires-3 (ASQ-3 ou Questionário Idades e Estágios, numa tradução livre para o português). Precisamos de uma avaliação dos alunos da educação infantil? Como realizá-la?

A avaliação é importante em qualquer etapa de ensino, inclusive na educação infantil, mas nesse caso a avaliação deve estar mais relacionada ao contexto de atendimento educacional e pedagógico que ao desempenho da criança em si. O ASQ-3 não consegue mensurar o resultado do aprendizado da criança, ele se baseia nos marcos de desenvolvimento padrão, que nem todas as crianças vão atingir necessariamente ao mesmo tempo ou naquela idade cronológica estabelecida como parâmetro. Esse instrumento não avalia o modo como o contexto estimula ou promove a aprendizagem.

Uma criança com menos acesso a bens culturais pode ter seu desenvolvimento prejudicado?

Todos os contextos nos quais a criança está envolvida podem fazer a diferença e influenciar no seu desenvolvimento. A maioria da nossa população está imersa em contextos, não só familiares, mas também educativos, que não fornecem todos os elementos para um bom desenvolvimento e aprendizado das crianças. Se eles não são adequados ou tão ricos, é claro que a criança vai demonstrar menos competências ou comportamentos considerados adequados para sua faixa etária. Há experiências internacionais, em países como Portugal e Itália, que valorizam a avaliação do contexto. Avaliam, por exemplo, quais as condições que a criança tem para trabalhar o jogo simbólico.

Inúmeras teorias tanto da sociologia quanto da psicologia apoiam a ideia de que esse é um processo importante de aprendizado para as crianças, mas na maioria das nossas instituições a possibilidade de realizá-lo é muito precária. Às vezes há dificuldade de entendimento de sua necessidade pelo profissional, que teve uma formação ruim, outras, faltam recursos naquele espaço: a existência de brinquedos e de horários reservados, no planejamento semanal, para o brincar de faz de conta, por exemplo. E há formas de avaliar o que está sendo oferecido, a partir de questões sobre quais atividades a criança realiza e como elas são propostas.

E quais instrumentos de avaliação da educação infantil o Brasil possui hoje?

Acho importante valorizarmos uma iniciativa do MEC de desenvolver um instrumento próprio, elaborado em conjunto com diferentes universidades. A proposta inicial desse grupo serviu como piloto para ser testado em alguns municípios, como Curitiba, e deu origem ao documento Indicadores da Qualidade na Educação Infantil, que é um primeiro passo para a autoavaliação das instituições. Precisamos construir um instrumento mais detalhado que o de hoje, que seja adequado à nossa realidade, mas possa avaliar mais a oferta da educação infantil que o desenvolvimento da criança, uma consequência do trabalho realizado. Se, a partir de uma primeira avaliação, tivermos um acompanhamento do que é feito, com reavaliações para ver se superamos as dificuldades, conseguiremos que a criança tenha um bom desempenho.

O Indicadores da Qualidade na Educação Infantil tem sido efetivamente utilizado?

Foi realizada uma pesquisa, em parceria do MEC, Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Ação Educativa, para monitorar o uso desse Indicadores. O documento é conhecido por muitos municípios, o que não se tem ainda é quais usos têm sido feitos dele. O material foi pensado para ser utilizado pelas instituições em sua autoavaliação, não por um elemento de fora, um pesquisador ou pedagogo da Secretaria de Educação. O interessante é que o coletivo da unidade utilize o instrumento como estratégia para analisar seu trabalho. É importante valorizar os indicadores e sua apropriação, principalmente por ser um material acessível, de fácil entendimento e simples manuseio. É nossa primeira experiência com um referencial próprio, discutido com pesquisadores e educadores da área. Valeria tê-lo como ponto de partida para chegarmos a um referencial mais detalhado, com mais elementos que os que foram colocados. Importarmos um instrumento estrangeiro, que foi pensado para outra realidade ainda que façamos adaptações, não é a mesma coisa que trabalharmos para desenvolver e aprimorar um referencial nosso.

Como a obrigatoriedade da oferta para alunos de 4 e 5 anos até 2016 vai afetar as redes? Os municípios estão preparados para essa ampliação?

É um grande desafio para os municípios, porque enquanto algumas capitais atendem quase 90% das crianças de 4 e 5 anos, há redes pequenas de algumas regiões cujo atendimento não chega nem a 50%  nessa faixa etária. O que nos preocupa é que a rede diminua as vagas para as crianças de 0 a 3 anos, que também são uma população demandante, para garantir a oferta, obrigatória, à população de 4 e 5 anos.

Qual a maior dificuldade das redes nesse processo de ampliação da oferta? Faltam recursos?

Faltam recursos, mas também informações sobre como geri-los. É preciso conhecimento técnico para planejar a expansão, para fazer estimativas de aumento gradual da cobertura.

A formação dos professores para atuar na área é adequada?

Continuamos com lacunas na formação profissional para atuar com as crianças pequenas. Temos uma diversidade grande nos cursos de pedagogia, mas, em geral, eles ainda não contemplam suficientemente a discussão sobre a educação infantil, precisam abordar mais temas, com mais tempo. Mas a corrida à educação infantil no âmbito educacional é recente, dos anos 1990; até então não era prerrogativa dos cursos de pedagogia trabalhar com as crianças de 0 a 6 anos.

Ainda faltam professores formados para atuar na educação infantil?

Se formos comparar com as outras etapas, sim, precisa­ríamos de mais profissionais. Mas temos muitas pessoas que estão fora dos postos de trabalho com formação adequada e habilitados a concorrer nos concursos da educação infantil. O problema é que muitos editais são abertos para os profissionais formados em pedagogia ou no magistério, mas não garantem o ingresso na carreira de professor, mas na de educador infantil, educador social ou atendente infantil, que é uma carreira paralela. Com isso, a rede foge da obrigatoriedade do piso, o direito às férias é diferente... Eles perdem uma série de conquistas que foram asseguradas para a carreira docente. E isso é um quebra-cabeça para a gestão também - muitos editais de concurso têm sido impugnados em função dos requisitos exigidos e das condições de trabalho para o profissional.

No Plano Nacional de Educação foram rejeitadas as emendas que proibiam as creches conveniadas. É possível expandir a educação infantil sem elas?

O que observo é que as unidades ligadas diretamente às Secretarias de Educação têm crescido mais. As instituições conveniadas fazem parte da trajetória de um passado recente da educação infantil - na década de 1960 e 1970 todas as unidades eram conveniadas. Há um grande número de crianças sendo atendidas nessas instituições e não dá para fechá-las de repente. O que precisamos é ir aos poucos abrindo mais escolas na rede direta e, quem sabe, transformar instituições conveniadas em unidades diretas da Secretaria.

Como ocorre a passagem da instituição conveniada para a rede pública?

É um processo complexo, mas geralmente começa por algum âmbito do trabalho: por conta dos funcionários que passam a ser concursados ou por causa da infraestrutura, quando a unidade conveniada não tem mais condições  de funcionar e a prefeitura constrói um prédio próprio e vai fazendo essa migração, por exemplo.

As prefeituras têm interesse em trazer para sua rede as unidades conveniadas?

Às vezes as decisões de uma gestão não dão continuidade ao que vinha sendo feito, então é difícil falar de uma tendência das prefeituras. Depende muito da perspectiva de organização política de uma gestão ou de uma questão econômica específica. Se há uma pressão grande da população por vagas e a prefeitura não tem recursos disponíveis naquele momento, por exemplo, ela pode se abrir para o conveniamento.

Como está ocorrendo a passagem para o ensino fundamental de nove anos? Foram feitas adaptações para esse aluno mais novo?

Há vários efeitos da lei que não foram previstos. Não tínhamos a perspectiva de que crianças com menos de 6 anos iam entrar no ensino fundamental,  como está acontecendo no Paraná, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Goiás e vários outros. O que foi valorizado em diferentes municípios e estados foi a ideia de antecipação do ensino fundamental, não a de ampliação e garantia da matrícula aos 6 anos. Há um lado muito pernicioso disso, que é o fato de as práticas pedagógicas no ensino fundamental terem mudado pouco, apesar de agora serem voltadas a uma criança mais nova, com um cotidiano e um trabalho escolar que tornam certas aprendizagens mais precoces. E isso não para quando ela entra no primeiro ano e já se depara com uma forma de trabalho pedagógico própria do ensino fundamental. Na educação infantil também está sendo exigido que crianças de 4 e 5 anos antecipem aprendizagens. Elas dão conta disso, mas a questão é que enquanto ensinamos letras, tiramos um tempo de brincadeira delas.

Como avalia o suporte do MEC à educação infantil nos municípios?

O ProInfância ampliou o financiamento para, além da construção das unidades, incluir os gastos iniciais do primeiro ano de funcionamento da instituição, cujas matrículas ainda não são contabilizadas pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). A ampliação é importante, mas o MEC tem dificuldades de  acompanhar e fiscalizar o uso dos equipamentos. Em alguns casos, a rede fecha outra unidade que estava precária, e transfere as vagas para o prédio novo, mas o objetivo é criar novas vagas. 
 
Fonte:  http://revistaescolapublica.uol.com.br/textos/26/artigo257910-1.asp

2 comentários:

  1. Brilhante entrevista. Nossos cursos de Pedagogia padecem do mal do fim do século, o curriculum é falho e eivado de pragmatismo. A educação infantil carece de foco no objetivo principal: o ambiente educativo e cultural; e professores promotores e facilitadores do conhecimento. Novos tempos (fim da era industrialista), nova realidade.

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  2. Catarina Moro é pedagoga vocacionada. Conheço-a desde a infância e asseguro que ainda não vi pessoa com tamanha dedicação ao seus misteres. Não foi só estudo que a fez pedagoga, mas seu afã é que a fez embasar-se no estudo. Parabéns!

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